Gênero Lírico 

Lírica e Linguagem

O gênero lírico

 

A essência lírica

    A essência lírica se manifesta nos fenômenos estilísticos próprios. Quando a obra apresenta predomínio desses traços sobre os demais, se situa no ramo da Lírica. Assim se pronuncia Rosenfeld:

 

Pertencerá à Lírica todo poema de

extensão menor, na medida em que

nele não se cristalizarem

personagens nítidos e em que, ao

contrário, uma voz central quase

sempre um “Eu” nele exprimir seu

próprio estado de alma.

 

    De fato, no poema lírico há sempre um eu que se expressa, vindo daí o subjetivismo atribuído a este tipo de composição. Não devemos, entretanto, confundir o eu lírico com o eu autobiográfico, já que o fato literário possui um universo fictício, onde os elementos da realidade concreta entram em tensão com o imaginário, para criar uma nova realidade, atrás da qual o autor desaparece. Portanto, o apregoado subjetivismo lírico independe do eu biográfico.

    É indiscutível a afetividade e a emotividade do clima lírico, sempre ligado ao íntimo e ao sentimento, tornando fluida e inconsistente a relação entre o sujeito e o objeto, isto é, entre o eu e o mundo. A emoção e o sentimento impedem a configuração mais nítida das coisas e dos seres que não se fixam, mas fluem sem contornos definidos na torrente poética. Quanto mais lírico o poema, menor será a distância entre o eu e o mundo, que se fundem e confundem. Quando aparecem descrições, análises, diálogos ou reflexões no poema, instaura-se um distanciamento entre o sujeito e o objeto e o clima lírico desvanece com a acentuação dos traços épicos ou dramáticos.

    A atitude fundamental lírica é o não distanciamento, a fusão do sujeito e do objeto, pois o estado anímico envolve tudo, mundo interior e exterior, passado, presente e futuro. Por isso Staiger denomina recordação a essência lírica, levando em conta a etimologia da palavra, do latim cor- cordis. Recordação quer dizer “de novo ao coração”, isto é, aquele um-no-outro, em que o eu está nas coisas e as coisas estão no eu. Tal integração só se admite numa obra lírica idealmente pura, o que é inconcebível em termos rigorosos. O poema tende para esta fusão, que será maior ou menor em função do estado afetivo.

 

Fenômenos estilísticos líricos:

Musicalidade

    O termo lírico originalmente liga-se a uma espécie de composição poética que os gregos cantavam ao som da lira. Grande parte do que hoje se denomina composição lírica era musicada; conforme ainda atesta a poesia trovadoresca medieval. Mesmo depois, quando se destinou apenas à leitura, conservou o remanescente dos seus primórdios, bastando lembrar que uma das características do Simbolismo era a aproximação da música e da poesia. Verlaine começa o poema intitulado “Art poétique” com um verso que ficou famoso: “De la musique avant toute chose” (música antes de tudo). Não é sem razão que tantas vezes se usa a palavra canto como sinônimo de poema.

    Um dos fenômenos estilísticos mais típicos da composição lírica é a musicalidade da linguagem, obtida através de uma elaboração especial do ritmo e dos meios sonoros da língua, a rima, a assonância ou a aliteração. A urdidura da camada fônica propicia uma tendência geral para a identidade entre o sentido das palavras e sua sonoridade, que podemos constatar na “Canção do vento e da minha vida” de Manuel Bandeira:

 

O vento varria as folhas,

O vento varria os frutos,

O vento varria as flores...

 

E a minha vida ficava

Cada vez mais cheia

De frutos, de flores, de folhas.

 

    A insistência dos fonemas fricativos /v/ e /f/ induz a uma aproximação do som dos versos ao sentido de voragem do vento varrendo as coisas num ímpeto destruidor. O significado metafórico do vento na imagem da devastação desencadeada pelo tempo, amplia-se na recorrência aliterativa dos fonemas congêneres.

    Diversa é a impressão do vento na “Cantiga outonal” de Cecília Meireles:

 

Outono. As árvores pensando...

Tristezas mórbidas no mar....

O vento passa, brando... brando...

E sinto medo, susto, quando

Escuto o vento assim passar...

 

    O acúmulo do fonema fricativo sibilante /s/ imprime aos versos, graças à sua fluidez, a suavidade de um vento brando, na melancolia da paisagem outonal que a rede de fonemas nasais sombreia. A sensação difere do outro poema, onde os fonemas labiais são as próprias chicotadas violentas do vento, que agora se faz apenas um sussurro de brisa.

    O ritmo martelado dos primeiros versos de Bandeira reforça a impetuosidade da destruição, enquanto em Cecília a lentidão rítmica se adapta ao estado de alma diluído molemente numa tristeza cansada.

    Esta aproximação dos elementos sonoros e significativos provém da disposição afetiva lírica que envolve tudo na ausência de distanciamento da recordação.

 

Repetição 

    Em correlação direta com a musicalidade surpreendemos a repetição, entre os traços estilísticos do poema lírico. Aliás, Jakobson situa no paralelismo a principal característica da função poética da linguagem, que se manifesta no ritmo, no metro, na estrofação ou nos recursos sonoros. Não esqueçamos que a palavra verso significa etimologicamente retorno, volta.

    Entre os processos mais comuns da repetição, citamos o refrão que exemplificaremos numa cantiga de amor de D. Dinis:

 

Quanto me custa, senhora,

tamanha dor suportar,

quando me ponho a lembrar

o que pensei desde a hora

em que formosa vos vi;

e todo este mal sofri

só por vos amar, senhora.

 

Desde o momento, senhora,

em que vos ouvi falar,

não tive senão pesar;

cada dia e cada hora

mais tristezas conheci;

e todo este mal sofri

só por vos amar, senhora.

 

 Devíeis ter dó, senhora,

do meu profundo pesar,

da minha mágoa sem par,

porque já sabeis agora

o muito que padeci;

e todo este mal sofri

só por vos amar, senhora.

 

    Todo o campo semântico da cantiga é uma repetição do refrão das três estrofes, que se resume na equação amor = mal, definição da atitude trovadoresca medieval:

                               

 

 

elementos

  intensificadores

formas verbais

substantivos

adj. e pron. adj.

advérb. e loc. adv.

 

 

 

 

custa

dor

tamanha

quanto

suportar

mal (3 vezes)      

todo (3 vezes)

penei

pesar (2 vezes)

profundo

senão

sofri (3 vezes)

tristezas

mais

cada dia

padeci        

 

cada hora

amar (3 vezes)

mágoa

sem par

muito

 

    Os significados das formas verbais e dos substantivos giram em torno de sofrimento e amor, intensificados pelos adjetivos, pronomes adjetivos, advérbios e locuções adverbiais.

    Quanto ao paralelismo do ponto de vista da rima, notamos que a concordância de sons se repete nas três estrofes, cumprindo assinalar que senhora se encontra no primeiro e último verso de cada unidade.

    Em geral, o poema explora os recursos da homofonia. Segundo Saussure, o mecanismo lingüístico repousa sobre identidades e diferenças (ou oposições) a fim de realizar um máximo de diferenciação. Por ser a tendência natural aproximar pelo sentido as palavras de som igual ou semelhante, a linguagem corrente evita a indiferenciação, da qual a linguagem poética tira partido nos efeitos que pretende.

    Na cantiga de D. Dinis, hora e agora se embutem sonoramente em senhora, avizinhando seus sentidos. É como se a senhora se fundisse nas horas do amante: amar a senhora = mal a toda hora. O tratamento fônico reitera o sentimento fulcral da cantiga.

    A inclusão da senhora no tempo se confirma na construção sintática, onde se repetem as orações temporais, que, ao lado das causais, permitem uma variação da equação do refrão: tempo do amor = causa do mal.

    O recurso da repetição é sintomático do não distanciamento lírico, na medida em que intensifica a fusão de todas as coisas no estado afetivo.

 

    Desvio da norma gramatical

    A repetição, contrária ao uso lingüístico corrente, demonstra que a linguagem poética provoca um desvio da norma gramatical. Jean Cohen, afirma que a norma do discurso poético é a antinorma, e que o poeta busca intencionalmente o obscurecimento e o equívoco, levando a língua a perder a firmeza. A ambigüidade, característica inerente a toda obra poética, decorre muitas vezes da violação da norma.

    O hipérbato, proveniente da inversão na ordem natural das palavras, é uma das infrações mais freqüentes, cometida para satisfazer às exigências do ritmo, do metro ou da rima, em prejuízo da clareza. Estes versos de “0 navio negreiro” de Castro Alves ilustram o caso:

 

Era um sonho dantesco... o tombadilho

Que das luzernas avermelha o brilho,

Em sangue a se banhar.

...................................................

Negras mulheres, suspendendo às tetas

Magras crianças, cujas bocas pretas

Rega o sangue das mães

..................................................

E ri-se a orquestra irônica e estridente...

 

    A língua perde a consistência e faz as palavras deslizarem de uma classe para outra, assumindo funções inusitadas. Fernando Pessoa utiliza este recurso em várias passagens:

 

Passou, fora de Quando,

De Porquê e de Passando...

 

    Entre os exemplos de desvio na regência verbal, citamos alguns versos esparsos de Mário de Sá-Carneiro:

 

Desço-me todo, em vão, sem nada achar

Assim me choro a mim mesmo

Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim

 

    De acordo com a sintaxe lógico-discursiva, o pensamento se organiza em seqüência, mas a linguagem lírica, em procedimento contrário, desestrutura as estruturas lingüísticas. A Canción de invierno do poeta espanhol Juan Ramón Jiménez elucidará este fenômeno:

 

 Cantan. Cantan.

¿ Dónde cantan los pájaros que cantan?

Ha llovido. Aún las ramas

están sin hojas nuevas. Cantan. Cantan

los pájaros. ¿ En dónde cantan

los pájaros que cantan?

 No tengo pájaros en jaulas.

No hay niños que los vendan. Cantan.

El valle está muy lejos. Nada...

Yo no sé dónde cantan

los pájaros — cantan, cantan —,

los pájaros que cantan.

 

    A repetição de cantan 13 vezes e pájaros 6 vezes comprova que o discurso, ao invés de se desenvolver linearmente, retorna sempre ao mesmo ponto. Na perspectiva lógica, ou a repetição esclarece a mensagem ou é redundante, sem acrescentar informação nem originalidade. No contexto poético, dá-se um aumento de informação porque o discurso não prossegue: recua e se obscurece, resultando imprevisível, original e ambíguo.

 

Antidiscursividade

    Susana Langer denomina discursividade a propriedade de uma espécie de simbolismo, o verbal, segundo o qual as idéia se enfileiram, como ocorre nas seqüências frasais. Existem coisas que não se adaptam à linearidade da forma gramatical discursiva, ha-vendo outra espécie de simbolismo, o apresentativo, que funciona de modo simultâneo e integral. O poema pertence ao simbolismo apresentativo, porquanto sua significação não é linear e sim globalizante.

    Embora a poesia utilize o disvursivo, devido ao seu material verbal, sempre reagiu contra a sintaxe lógico-gramatical, tentando romper suas imposições. Desde o período do Simbolismo, os poetas se rebelaram abertamente contra os procedimentos sintáticos, numa antecipação à revolução empreendida pelos Ismos dos movimentos vanguardistas, que fizeram desta questão uma das plataformas de suas reivindicação, em favor de uma literatura desatrelada das amarras tradicionais. A poética atual se empenha cada vez mais em abolir o discursivo ao suprimir os elos conectivos sintáticos, chegando mesmo, em muitos casos, a eliminar a frase, conforme se verifica na Poesia Concreta. Cassiano Ricardo empregou este procedimento em várias composições, entre as quais Posições do corpo:

 

Sob o azul

sobre o azul

subazul

subsol

subsolo

 

    O breve poema opera um desdobramento fono-semântico do sob e azul (metáfora de terra), na medida em que estes dois termos se diluem nas demais variações e combinações. O conteúdo significativo espacial da preposição sob ecoa no prefixo sub- que compõe as três últimas palavras. As duas preposições antitéticas indicam as “posições do corpo”, abaixo da terra (enterrado), em cima (na superfície) ou acima (na estratosfera), resumindo a parábola do homem no seu irrecorrível destino.

    Mesmo sem atingir tais extremos compositivos, as vivências anímicas ejeitam a rigidez das construções sintáticas, e repelem o discursivo, que instala o distanciamento reflexivo, incompatível com a essência lírica.

 

Alogicidade

     A alogicidade caracteriza a poesia lírica, numa inter-relação com os demais aspectos típicos, desde que estrutura lógica do    discurso expressa as formas da cogitação racional que não se concilia com a linguagem lírica. Naturalmente esta propriedade diz respeito ao componente do imaginário que integra toda criação artística, entretanto, o poema lírico parece romper com mais veemência os estatutos da realidade controlada pela razão. É o que verificamos na definição do amor, através da série de oxímoros no soneto de Camões, numa das mais belas manifestações do petrarquismo renascentista:

 

Amor é fogo que arde sem se ver;

É ferida que dói e não se sente;

É um contentamento descontente;

É dor que desatina sem doer;

 

É um não querer mais que bem querer;

É solitário andar por entre a gente;

É um não contentar-se de contente;

É cuidar que se ganha em se perder.

 

    O oxímoro e o paradoxo constituem um dos traços estilísticos mais notórios do Cancioneiro de Fernando Pessoa, perfeitamente de acordo com o tema do conflito entre o ser e o não ser, eixo da obra. No mundo do não ser que, para Pessoa, é o das aparências vãs, se insinuam as mais desconcertantes afirmações, que veremos em alguns versos, colhidos da coletânea:

 

Porque me destes o sentimento de um rumo,

Se o rumo que busco não busco

 

Quando penso que vejo

Quem continua vendo

Enquanto estou pensando?

 

Não compreendo compreender, nem sei

Se hei de ser, sendo nada, o que serei.

 

Sonho sem quase já ser, perco sem nunca ter tido,

E comecei a morrer muito antes de ter vivido.

 

Por que, enganado,

Julguei ser meu o que era meu?

 

    Todas essas contradições corroboram a impossibilidade de se captar o poema lírico através do raciocínio, pois o transbordamento de sentimento ultrapassa a jurisdição da lógica, aprofundando outras camadas alheias ao regulamento codificado.

 

Construção paratática

    Nas composições mais líricas, predomina o uso da construção paratática (orações coordenadas) sobre a hipotática (orações subordinadas). Uma vez que o período composto por subordinação requer maior elaboração mental, as relações causais, condicionais, finais, concessivas pressupõem o raciocínio lógico e conectante. Justamente onde comparecem tais conjunções, o clima lírico se desmancha. Na hipotáxe, a subordinação a uma oração principal estabelece um nexo lógico de dependência, em oposição à liberdade da expansão das emoções.

    As orações independentes e as coordenadas da parataxe correspondem melhor ao fluxo da disposição afetiva. As orações valem por si, justaponde-se sem prioridade, como acontece na emoção lírica, em que fatos distantes no tempo e no espaço se aproximam e se fundem nas vivências da alma. Em Meus oito anos de Casimiro de Abreu, a recordação da infância une o passado e presente num reviver repleto de ternura. As breves orações coordenadas da estrofe que transcrevemos refletem a justaposição dos fatos, arrastados pela torrente lírica:

 

Naqueles tempos ditosos

Ia colher as pitangas,

Trepava a tirar as mangas,

Brincava à beira do mar;

Rezava às Ave-Marias,

Achava o céu sempre lindo,

Adormecia sorrindo,

E despertava a cantar!

 

Conclusão

    Todos os fenômenos estilísticos examinados decorrem da essência lírica, a recordação, que funde mundo interior e mundo exterior. Este não-distanciamento impossibilita a observação e a compreen¬são e cria um contexto impreciso em que a expressão lingüística deixa de ser construída logicamente, fazendo tudo dissolver-se: o contorno do eu e do mundo e a estrutura da língua. Assim se justificam a musicali¬dade, as repetições, o desvio da norma gramatical, a anti-discursividade, a alogicidade, a construção paratática.

    Esses fenômenos estilísticos podem apresentar-se em qualquer obra, no entanto, somente quando predominam, esta se enquadrará no ramo da Lírica.

  

 

 

 

 

Qual é o fenômeno estilístico mais comum no gênero lírico?

Resposta: O fenômeno estilístico mais comum da composição lírica é a musicalidade da linguagem, obtida através de uma elaboração especial do ritmo e dos meios sonoros da língua, a rima, a assonância ou a aliteração.

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ROSENFELD. Anatol. O teatro épico, São Paulo: Buriti, 1965. p. 5.

BERARDINELLI, Cleonice. Cantigas de trovadores medieva